No dia 29 de abril, a “vlogueira” Kéfera postou uma imagem, deitada em um boi, criticando a pecuária, afirmando que “Bicho Sente” e que a melhor coisa que ela fez foi se tornar vegetariana. Eu não sei em que mundo eu vivo, mas a primeira coisa que pensei quando vi a repercussão do assunto foi: “Quem é Kéfera?”. Depois eu descobri que ela é famosa. Assim mesmo, sinceramente, não estou preocupada com a Kéfera.
Eu me preocupo sim com a Liv! Não perca tempo vendo o post da Kéfera, mas se você não viu o youtube da Liv, eu sugiro que antes de continuar a ler este texto, você assista: https://www.youtube.com/watch?v=BUCoWb2iiKI. A Kéfera, caro leitor, já é uma mulher formada. Vive em um meio urbano. Não vamos conseguir mudar a opinião dela, também não acho que ela queira, não dá Ibope.
Agora a Liv me preocupa porque é uma criança. Tem um momento no vídeo em que a Liv escancara um problema gravíssimo no ensino brasileiro. Ela diz assim: “Como eu descobri que carne é feita de animal? Um dia eu estava na rua passeando com meu papai e meu papai falou assim (para a pessoa que vendia o espetinho de carne) – ‘Ai meu, me dá dois bois’. Ai eu entendi que o boi era aquilo ali (a carne do espetinho)”.
Vejam bem. Ainda que muito do vídeo da Liv tenha sido um roteiro escrito por um adulto, muitas crianças realmente não têm ideia de onde vem a carne ou mesmo as frutas e hortaliças. Vivemos em um momento onde há uma total distância entre o mundo urbano e o mundo rural. Onde, tal como a carne, talvez as crianças imaginem que o limão dá na geladeira.
O discurso da Kéfera e da Liv pouco me emociona. Mas há um mês, sai da fazenda chorando com a sensibilidade de um menino de onze anos: o Diogo. Diogo é o filho de um vaqueiro que ajuda a minha família no manejo do gado. Todas as vezes que manejamos o gado, Diogo me faz companhia no curral. Claro que sempre muito chateado, pois ele reforça todas as vezes que não queria estar lá sentado comigo, mas sim com o pessoal no campo.
Pois bem, eu e Diogo temos geralmente um dia todo para jogar conversa fora. Há um mês, Diogo estava lamentando que o chumbinho da espingarda dele tinha acabado e que seu pai não tinha comprado mais. Indignada falei para o Diogo: “Viu, mas você não tem dó de ficar atirando nos passarinhos”. Diogo, na maior simplicidade me disse: “Mas eu não mato à toa. Eu mato para comer”.
Eu indaguei: “Mas comer passarinho?” E o Diogo me deu um show de sabedoria, respondendo: “Mari, você já viu quanto custa a carne? Mesmo que a minha mãe crie os porcos, os passarinhos às vezes dão para uma refeição da família toda (Diogo tem mais três irmãos). Eu mato, pego e levo para minha mãe e para minha irmã tirarem a pena e limparem. A gente economiza, porque carne é caro”!
Diogo começou, então, a me mostrar uma variedade imensa de espécies. Cada passarinho novo que aparecia no curral, ele me ensinava se aquele era bom para comer ou não. Os que não eram bons eram aqueles que “só tinham osso e não juntavam carne”.
Não satisfeito, Diogo me emocionou ainda mais: “Mas viu, não pode errar o tiro. Minha vó disse que quando a gente erra o tiro e o bichinho voa, sem morrer, onde ele ficou machucado vai ser onde meu filho vai ter um defeito quando nascer. Por isso, eu tomo muito cuidado para atirar”. Caro leitor, veja a sabedoria dos “antigos”, esta foi a forma que a avó de Diogo encontrou para não fazer os animais sofrerem. Vejam o esforço de um menino de onze anos para levar COMIDA para a família. Emocionante, não?!
O que difere Diogo da Kéfera e da Liv? Diogo vive o campo! Ele sabe como é a produção. A morte do animal não é, para ele, um sofrimento. Ao contrário, é algo que Diogo, com apenas onze anos, utiliza para alimentar a sua família. Diogo já reflete sobre o custo da alimentação. O dinheiro “contado” de Diogo reflete a realidade da maior parte das famílias brasileiras. Tenho amigos vegetarianos e ouvi de um deles “Não é barato deixar de comer carne. Inclusive, não é para qualquer faixa de renda, a não ser que você substitua a carne apenas pelo ovo”. Mas este, é um assunto para outro texto.
Acredito que a cadeia precisa melhorar o marketing, como já comentei em outro texto “O marketing da cadeia está nas mãos de quem?”. Porém, no caso da Kéfera e da Liv, vivemos um problema de acesso à informação, para não dizer de formação em cidadania ou até mesmo educação.
A solução – Quando morei em Ohio, nos Estados Unidos, tive a chance de estagiar na Future Farmers of America (FFA), a tradução literal seria “Futuros Fazendeiros dos Estados Unidos[1]”. Um dos pilares da FFA é o ensino de agricultura nas escolas públicas. Os alunos podem, desde crianças, ter aulas no período da tarde sobre agricultura, tal como eles tem de espanhol ou música. Eles visitam propriedades!! Conhecem a produção.
Lá em Ohio, na turma na qual lecionei, metade dos alunos eram “urbanos”, mas se interessavam pelo agronegócio. Alguns, desde pequenos já falavam que optavam pelas aulas de agricultura “porque era algo importante para o País”. A questão é que a FFA ensina como é produzido o alimento e qual a importância dos agricultores e pecuaristas para a sociedade. Quando teremos isto na grade curricular das nossas escolas? Precisamos propor soluções neste sentido.
Kéfera e Liv não sabem da onde vem, nem como é produzida a carne. Talvez nunca tiveram a preocupação de Diogo, de ter uma restrição orçamentária para comprar comida. Diogo é menos “humano” ou “sensível” que elas por matar passarinhos para comer a carne? Acredito que não. Ele apenas entende o processo e a importância do alimento.
Não podemos ser míopes: a cadeia pode ser mais sustentável e ainda há muito a ser expandido na adoção de práticas de bem-estar animal. Mas, o discurso de Kéfera e de Liv, é tão superficial que demonstra que, talvez, o problema seja no ensino básico. A cadeia precisa, além de marketing, refletir a inserção de alguns temas na grade escolar. Por exemplo, eu queria entender o que a Kéfera quis dizer quando afirma que “a pecuária é uma das atividades mais impactantes no meio ambiente, consumindo (….) pesticidas e drogas”. Drogas?!
“A escola da vida” de Diogo tem muito a ensinar para as duas. Para a Liv talvez a graça de ser criança, ao invés de uma estrela de Youtube.
Escrito por: Mariane Crespolini
Fonte: Scot Consultoria
Possui graduação em Gestão Ambiental pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – Universidade de São Paulo – ESALQ/USP e mestrado em desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É pesquisadora na Faculdade Rural da Escócia (SRUC), onde finaliza seu doutorado em desenvolvimento econômico, realizado também pela Unicamp.
[1] – Veja mais informações sobre a FFA aqui https://www.ffa.org/home. A Famato tem um programa, em Mato Grosso, que eu imagino que tenha sido inspirado na FFA http://sistemafamato.org.br/portal/famato/futuros_produtores.php.